Os “dois minutos de ódio” do nosso dia a dia
- Gamboa do Jaguaribe

- 4 de ago de 2022
- 2 min de leitura

Desde criança gosto muito de literatura ficcional, principalmente as distopias futuristas. A leitura de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley ou Laranja Mecânica de Anthony Burgess, sempre me fascinou, pois era uma forma de me preparar para prováveis dias imprevisíveis.
Porém, nunca imaginei que uma simples ficção poderia ter tanto paralelo com a nossa realidade atual como 1984 de George Orwell. Esse escritor libertário nos agraciou com a sua fantástica obra de 1949, mostrando um mundo governado por um sistema autoritário, onde todas as pessoas eram vigiadas por câmeras, desde o seu emprego até a sua casa. Essa conotação já está implícita nos vários programas de TV, onde pessoas são enclausuradas e gravadas 24 horas para aprovação ou reprovação do público cativo.
Entretanto, uma das passagens do livro que mais me chamou a atenção foi a parte dedicada aos “2 minutos de ódio”, onde os trabalhadores submetidos a um trabalho rotineiro e degradante, tinham um pequeno intervalo para assistir um programa que exibe um “inimigo público”, onde todos devem xingá-lo e escarnecê-lo, mesmo aqueles que nem sabiam o crime desse fantasma que assombrava a nação, mas faziam para não sofrer sanções. Assim, depois de descarregar toda sua raiva, o cidadão poderia voltar para suas funções tranquilamente.
Essa situação pode passar despercebida por muita gente, mas quando observamos alguns programas policiais sensacionalistas, onde os seus apresentadores geralmente exibem de forma jocosa e até degradante aqueles que praticaram algum delito, fazendo desses marginalizados (em sua maioria pobres, analfabetos e racializados) verdadeiros párias sociais, dignos de serem apedrejados, se não de fato, pelo menos simbolicamente.
Aqueles que estão na hora do almoço em suas casas, além do alimento físico em seus pratos, se entopem de uma linguagem violenta e alienada e saem repetindo bordões simplistas, como “bandido bom é bandido morto”, “pena de morte já” ou “é tudo vagabundo”, entre outros impropérios. É o suficiente para depois voltar ao trabalho aliviados de alguma forma, assim como no livro do autor britânico.
É certo que numa sociedade violenta como a nossa, onde quase todos nós já passamos por alguma situação de violência (assaltos, roubos), temos a sensação de impunidade, queremos mais é ver aqueles que nos abusaram sendo punidos, castigados pela sua ação. Então, a noção de justiça, ou seja, a reparação do dano, é cada vez mais substituída pelo sofrimento alheio como válvula de escape.
Enquanto os cidadãos estão cada vez mais acuados dentro de suas casas com medo da violência, programas que lucram com a violência e a degradação social ganham audiência de inúmeras pessoas insensibilizadas.
George Orwell com seu livro previu não só o exibicionismo barato dos reality shows, mas também um tipo de fascismo social quase imperceptível, em que nós mesmos abrimos as portas para ele entrar em nossas casas. Agora pode voltar ao trabalho!!!
Texto pelo professor e escritor Fábio Gomes



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