O Estado Democrático de Direito é definido como uma perspectiva política no qual os cidadãos teriam os seus direitos fundamentais garantidos e respeitados. Os direitos individuais e sociais seriam assegurados pelo direito constitucional. Entretanto, esses direitos sempre são ameaçados quando uma minoria tenta colocar seus privilégios acima dos interesses da sociedade. Esse é o caso do Marco Temporal, Projeto de Lei 2903/2023, que está tramitando no Congresso Nacional e atende um projeto político das elites ruralistas em detrimento da existência das nações indígenas no Brasil.
Quando os colonizadores europeus chegaram em terras Abya Yala, e mais especificamente em Pindoretama, do século XV em diante, existiam milhares de nações indígenas, cada uma com seus próprios valores, costumes e crenças. As etnias autóctones tinham uma ligação intrínseca com seu território, de onde tiravam sua sobrevivência, através da coleta, da caça, da pesca e da agricultura itinerante, além da ligação sagrada com seus ancestrais.
A Constituição Federal do Brasil é inspirada nas teses contratualistas dos filósofos políticos do século XVIII, que moldaram os Estados modernos pelo mundo. Tais concepções partiram da ideia de que antes da existência da sociedade civil, os homens viviam em estado selvagem, sendo impossível a concórdia e a paz.
De acordo com Thomas Hobbes, “o lobo era o lobo do homem”, e portanto somente a imposição de uma autoridade poderia promover a ordem. Essa autoridade seria o Estado, que estaria acima dos interesses individuais e, portanto, teria legitimidade para governar os homens.
Já para John Locke, nesse estado primitivo, os seres humanos já possuíam os chamados “direitos naturais”, ou seja, direitos que independem da existência do Estado, ou existia antes do Estado. O direito à vida e ao próprio corpo, à liberdade de pensamento e locomoção, à busca pela felicidade e outros que suas vidas dependiam diretamente.
Essa nova concepção, partindo da perspectiva de que todos os homens são iguais, marcou o estabelecimento do Estado moderno, tendo como símbolo a Revolução Francesa de 1789. “No campo político, o nascimento do Estado moderno definiu o marco da centralidade territorial e institucional do poder político” (1).
A colonização portuguesa nas terras batizadas de Brasil agrupou as diversas nações originárias dentro de uma mesma unidade político-territorial, perdendo seus direitos naturais e foram submetidas à tutela pelo Estado. Com a imposição do Estado colonial (posteriormente imperial e republicano) e a sua abrangência territorial, os povos indígenas foram incorporados a esse poder político-administrativo como seres sem autonomia e independência, incapazes perante a lei.
Assim, os povos originários foram submetidos a todo tipo de violência, como, por exemplo, a expulsão de suas terras, no qual eram obrigados a migrar para outros lugares. Com idiomas diferentes e a falta de escolarização, os indígenas foram impedidos de assinar documentos, entender leis, comprar terras, etc., marginalizando-os e excluindo-os da sociedade civil. Como estavam submetidos à tutela do Estado, sempre dependiam da burocracia pública, que pouco fazia para impedir tais atrocidades.
Ao final do período da ditadura cívico-militar no Brasil e a retomada da democracia, as diversas forças políticas trataram de estabelecer uma norma geral que retomasse alguns direitos naturais, mas agora positivizados, que foram chamados de direitos fundamentais, estabelecidos na Constituição Federal do Brasil em 1988, chamada também de constituição cidadã.
Direitos fundamentais são aqueles direitos em que cada nação soberana advoga em suas constituições próprias e são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser mudadas por leis. Essa normatização veio garantir que os cidadãos brasileiros fossem protegidos do arbítrio e das injustiças.
De acordo com o Artigo 231 da CFB “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
A retomada do Marco Temporal, já considerada inconstitucional em 2023 pelo STF, demonstra a insistência dos grandes latifundiários e seus agentes políticos comprados em desrespeitar a Carta Magna para assegurar a existência e ampliação dos seus privilégios.
Essa tese visa garantir que a demarcação de terras indígenas seja homologada apenas para aqueles povos que comprovem que ocupavam o território antes da promulgação da Constituição de 1988, desconsiderando todo o processo histórico de violência e desterritorialização. Portanto, não se pode confundir posse tradicional indígena com instituto civil da posse.
O Marco Temporal, portanto, vai contra todas as premissas do Estado Democrático de Direito, que se compromete com os direitos fundamentais dos cidadãos, inclusive os cidadãos indígenas. O artigo 231 estabelece que as terras já pertencem aos povos indígenas que as ocupam tradicionalmente, independente de uma data específica, sendo direito originário e atemporal.
Portanto, tal projeto político é um retrocesso para a sociedade brasileira, que deve reconhecer a existência das nações indígenas como patrimônio histórico e cultural, como verdadeiros guardiões das florestas e do meio ambiente, capazes de frear as consequências das mudanças climáticas provocadas, principalmente, pela fúria ambiciosa dos que querem transformar a natureza em mera mercadoria para obter os seus lucros.
1. CASTRO, Iná Elias. Geografia e Política: território, escalas de ação e instituições. Editora Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2005.
Kin 26, Dia 08 da Lua Magnética
Autor: Fábio Gomes dos Santos, graduado em Geografia (UFRN), especialista em Ensino de Geociências (IFRN), professor e escritor.
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